O TikTok está na mira de governos por todo mundo. O conhecido app de vídeos curtos também está no centro de um conflito geopolítico já chamado de “nova Guerra Fria”.
Nos últimos meses, legisladores dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido proibiram o uso do aplicativo em dispositivos oficiais ou recomendaram que funcionários públicos o desinstalem de seus aparelhos. Outras nações seguiram o exemplo, anunciaram rapidamente medidas similares e chegaram a classificar a rede social como uma “ameaça”.
Parlamentares trabalham também para aprovar uma lei extrema, que dá poderes a Joe Biden para proibir o aplicativo em todos os smartphones do país. A lei, com o sugestivo nome “Dissuadindo os Adversários Tecnológicos da América” (DATA), revoga as proteções de conteúdo criativo em ambientes digitais. Além disso, dá poderes específicos ao presidente, que poderia impor sanções a empresas que “compartilham dados sensíveis” com governos de países considerados adversários.
Entender como um app usado mensalmente por mais de 150 milhões de norte-americanos (mais de 1 bilhão de usuários no mundo todo), que experimentou sua primeira onda de sucesso com danças de adolescentes, se tornou vetor de uma disputa geopolítica não é fácil. Como isso aconteceu?
Assim como outras redes sociais, o TikTok já foi acusado de muitas coisas. Destruir nossa atenção, deteriorar a saúde mental de jovens, espalhar conteúdo de ódio. Mas ela se diferencia em um ponto muito importante.
Como muitos sabem, o maior fator de sucesso da rede social é sua aba For You Page (FYP, para os íntimos), que recomenda incessantemente vídeos baseados em seus interesses, como uma TV que se renova para atender uma única pessoa. É possível dizer, de forma resumida, que foi essa aba que tirou o aplicativo do nicho e o tornou uma das maiores forças tecnológicas e culturais da atualidade.
O algoritmo de recomendação por trás das postagens é um dos maiores segredos tecnológicos da atualidade, e seu modo de exibição vertical já foi imitado pelo YouTube e Spotify e causou outra mudança apressada no Instagram, com os Reels.
Até o momento, não existem evidências de que Pequim já usou a lei para ter acesso ao histórico ou localização dos mais de 1 bilhão de usuários da plataforma, mas o volume colossal de registros da empresa passou a preocupar governos, que tentam agir rápido enquanto a rede social se torna cada vez maior e influente.
“É notório o crescimento mundial do Tiktok, especialmente após a pandemia, então também é natural que pensemos um possível banimento sob uma ótica de competição, haja vista seu impacto em toda a indústria e no ambiente virtual, em especial se comparado com outras redes sociais”, afirma Antônio Borges Neto, especialista em direito digital, em entrevista ao R7.
Em dezembro passado, as preocupações cresceram e alcançaram seu ponto mais alto: após vazamentos de documentos que mostravam a proximidade da ByteDance com Pequim, funcionários da empresa rastrearem o histórico de localização de jornalistas do BuzzFeed News e Financial TImes, em busca de descobrir um possível delator interno.
Para se livrar de uma crise potencialmente catastrófica, a ByteDance anunciou a demissão de quatro funcionários e a reestruturação de todo o departamento de auditoria interna e controle de risco, para impedir que mesmo funcionários de alto escalão acessem dados sigilosos de usuários.
Além disso, o TikTok divulgou que gastou mais de US$ 1,5 bilhão em rigorosos esforços de segurança de dados e rejeita alegações de espionagem, além de afirmar que “proteger a segurança nacional é o objetivo”.
Antes dos Estados Unidos e Europa, o aplicativo foi proibido totalmente na Índia, em meados de 2020. A medida foi tomada pelo governo indiano após o crescimento das tensões entre os dois países — junto com o TikTok, 58 apps chineses foram completamente banidos. Em janeiro de 2021, a ByteDance saiu oficialmente do país e perdeu um de seus maiores mercados. Na época, estima-se que o TikTok havia sido instalado 610 milhões de vezes em aparelhos da Índia.
Em um caso similar à invasão do Iraque, que acabou de completar 20 anos, fica claro que uma eventual proibição do TikTok não depende apenas de fatores técnicos, mas de um jogo político complexo. Pelas declarações de governantes da União Europeia e outros aliados dos Estados Unidos, o destino do TikTok também nessas regiões parece depender diretamente das decisões políticas que serão tomadas nas próximas semanas em Washington.
As sessões legislativas recentes mostraram que os congressistas parecem dispostos a elevar o tom contra o aplicativo, embora ainda não esteja claro que medidas efetivas serão tomadas a partir de tais conversas. Ou mesmo se algum ataque além da retórica será feito.
O congressista republicano Michael McCaul, presidente do Comitê de Segurança Interna da Câmara dos Representantes, disse que o TikTok era um “balão espião em seu telefone”, enquanto o também republicano Mike Gallagher chamou o app de “fentanil digital para nossas crianças”, no ano passado.
No dia 23, o próprio CEO do TikTok, Shou Zi Chew, foi ao Congresso para tentar conter a escalada contra o app. Em um interrogatório descrito como “anormalmente intenso”, Chew mal teve tempo para responder questões mais complexas.
“O TikTok escolheu, repetidamente, o caminho de maior controle, maior vigilância e maior manipulação. Sua plataforma deveria ser proibida”, declarou a presidente do Comitê de Energia e Comércio da Câmara dos Representantes, Cathy McMorris Rodgers, já na abertura da audiência. O congressista Gus Bilirakis, subiu o tom ainda mais e disse que a tecnologia por trás do TikTok “está literalmente levando à morte”.
Chew afirmou que é a favor de uma regulamentação ampla, que colocaria a atuação da ByteDance nos trilhos, junto com suas colegas das big techs, que também enfrentaram audiências do tipo após as eleições presidenciais de 2016. Mas, uma legislação nessa linha — apoiada por políticos influentes, como a senadora Elizabeth Warren — exige uma investigação mais longa e também afetará gigantes de redes sociais dos Estados Unidos.
Antes de comparecer ao Capitólio, Chew publicou um vídeo na própria rede social, em que fez uma espécie de defesa prévia da plataforma, afirmando que “quase metade dos Estados Unidos usa o TikTok”, o que inclui cerca de 5 millhões de perfis corporativos. Além disso, ele acrescenta que a plataforma tem 7.000 funcionários norte-americanos.
A defesa não foi o suficiente. No mesmo dia, em uma sessão legislativa vizinha no Comitê de Relações Exteriores, o secretário de Estado Antony Blinken classificou o TikTok como “uma ameaça” que “deveria ser encerrada de uma forma ou de outra”.
Enquanto isso, do lado de fora do prédio do Congresso, manifestantes protestavam em favor de manter o aplicativo legalizado ou ao menos apoiavam legislações que regulamentem todas as plataformas de mídias digitais que operam no país. Bruna Thalita, pós-graduada em direito internacional, lembra também que o aplicativo é uma ocupação profissional para muita gente.
BRENDAN SMIALOWSKI/AFP –
“Para muitos, além de uma plataforma social, o TikTok é uma plataforma de trabalho e o fato de a qualquer momento poder ser banida do país apenas por decisão do presidente traz insegurança não apenas sobre essa questão específica, mas abre precedente para outras decisões similares também”, afirma a especialista, entrevistada pelo R7.
Antes de Shou Zi Chew — nascido em Singapura, com MBA em Harvard e um estágio no Facebook no currículo — depor diante de congressistas, outros chefões de big techs fizeram o mesmo. Mark Zuckerberg (Meta), Jack Dorsey (ex-CEO do Twitter) e Sundar Pichai (Google) foram interrogados no Legislativo dos EUA, em 2018. Em julho de 2020, durante o encerramento das investigações sobre monopólios no setor, foi a vez de Tim Cook (Apple) e Jeff Bezos (Amazon) se juntarem ao grupo que enfrentou perguntas semelhantes.
Os motivos foram os mais variados, e os questionamentos dos congressistas focaram vazamento de dados, censura de conteúdo e até relações com a China. Os longos depoimentos, repletos de detalhes e lutas partidárias específicas do país, não são simples de resumir, mas não é difícil concluir que toda a retórica dos políticos esbarrou numa falta de conhecimento de como a tecnologia funciona. Todos eles pareceram concordar que alguma coisa precisava ser feita para regulamentar como os algoritmos e outras ferramentas de poder de tais empresas funcionam, mas nenhuma lei saiu de todas as conversas.
CHIP SOMODEVILLA/GETTY IMAGES NORTH AMERICA/GETTY IMAGES/VIA AFP – 23.03.2023
Zuckerberg, o mais visado nos questionamentos por causa do escândalo da Cambridge Analytica, chegou a prometer mudanças, que nunca vieram.
Muitas das questões levantadas na época (coleta ilegal de dados, conteúdo prejudicial ao público) hoje são o motor das denúncias contra o TikTok, o que reforça a tese de que as batalhas contra o aplicativo tenham uma raiz muito mais política do que legal.
Em um texto opinativo de 2020, publicado no New York Times, o acadêmico Tim Wu, conselheiro dos governos Obama e Biden, deixou claro que a luta contra o TikTok é parte de uma disputa política contra a China.
“Se quase qualquer outro país além da China estivesse envolvido, as exigências de Trump seriam indefensáveis. Mas as ameaçadas proibições do TikTok e do WeChat, quaisquer que sejam suas motivações, também podem ser vistas como uma resposta tardia, um olho por olho, em uma longa batalha pela alma da internet”, argumentou Wu, que ironicamente é apontado como o cunhador do termo “neutralidade da rede”.
Desde 2022, as big techs do país enfrentam uma turbulência sem precedentes ainda longe de acabar. Com exceção da Apple, todas elas demitiram dezenas de milhares de funcionários e ainda encaram uma crise de confiança que pode mudar a forma como operam.
Na visão de Anderson Röhe, mestre em política internacional, pesquisador da USP, doutorando em tecnologias de inteligência e especialista em direito digital, muito mais poderia ser feito para evitar tais atividades das grandes empresas de tecnologia dos EUA:
“Hoje é global a necessidade de uma regulamentação mais ampla e eficaz do poder das big techs, tais como Meta, Microsoft, Amazon, Google, entre outras, no intuito de ao menos limitar seu poder de captação da atenção, de controle e influência sobre o usuário. Fenômeno que não se atém aos EUA”, afirma Röhe, em entrevista ao R7.
Enquanto a regulação não chega, tais empresas são processadas em várias instâncias. Um processo recente aberto pelo Departamento de Justiça dos EUA busca pôr fim ao que o governo considera um abuso do domínio do setor de publicidade. Anteriormente, o Google já foi acusado de coletar dados sem autorização nos Estados Unidos, cometeu sucessivas violações de privacidade em vários países europeus, descumpriu leis federais com o assistente de voz, monitorou sem permissão, entre inúmeros outros processos. A Meta está numa situação similar.
Mas essas fortes suspeitas sobre as atividades de tais corporações não colocaram em risco as atividades delas, ou mesmo as assustou com a ameaças de proibição. Muito pelo contrário: as big techs ainda operam praticamente livre de pressão regulatória até o momento. Apontar o dedo para o TikTok pode ser uma forma dos legisladores norte-americanos mostrarem algum tipo de ação no ambiente digital, sem mexer no próprio quintal igualmente problemático.
“Acredito que o possível banimento do TikTok nos EUA não tem como pauta principal a regulamentação das big techs, é com certeza uma questão mais política e uma luta mais direta em relação à China”, afirma a especialista Bruna Thalita.
Anderson Röhe vai ainda mais fundo na questão, e analisa que o TikTok pode estar sendo punido simplesmente por funcionar melhor que seus concorrentes.
“Em tese, o algoritmo do TikTok conheceria melhor o comportamento e os hábitos de consumo individuais quando comparado a seus concorrentes diretos, como o YouTube e o Instagram. Tais alegadas práticas comerciais mais invasivas, que até mesmo poderiam monetizar as emoções de um público em grande parte formado por crianças e adolescentes, geram um imediato apoio midiático pela proibição”, afirma Röhe.
Uma disputa dessa envergadura obviamente não começou do dia para a noite, ela é parte de uma queda de braço de poder travada por Estados Unidos e China há décadas, motivada por questões muitas vezes ocultas das discussões públicas.
“Dentre os principais motivos, vêm logo em mente os de natureza comercial, tecnológica e mesmo cultural. Todavia, pouco se fala que, por trás da alardeada disputa sino-estatunidense, há uma campanha sistemática anti-China que não é recente, e já vem de longa data. Isso se dá porque as variáveis que mais pesam nesse jogo de poder e por maior influência global são as de caráter geopolítico e de concorrência”, ressalta Röhe.
Durante o governo de Donald Trump, o TikTok chegou perto de um acordo para impedir sanções de uma ordem presidencial. Pressionado por autoridades, a ByteDance concordou em processar todos os dados de usuários dos Estados Unidos em servidores localizados em solo norte-americano e administrados por uma empresa do país. A medida, chamada Projeto Texas, era uma forma da ByteDance repassar o controle técnico das operações do TikTok nos Estados Unidos.
Em setembro de 2020, a Oracle chegou a ser escolhida como parceira de negócios, mas o acordo foi bloqueado. Um dos motivos foi uma série de mudanças na legislação chinesa, que impedia empresas estrangeiras acessarem o algoritmo do aplicativo.
O outro foi porque o governo Trump acabou em um beco sem saída, ao descobrir que não poderia bloquear o TikTok nos EUA sem uma legislação específica — dois tribunais federais decidiram em favor do TikTok, em outubro e dezembro de 2020, e assim sepultaram as chances de uma proibição efetiva do app. Agora, Joe Biden tenta contornar essa limitação com a proposta de aprovar uma legislação que lhe dê poderes para banir apps de nações inimigas.
Em um outro caso flagrante de disputa comercial por motivos políticos, os norte-americanos lutaram contra a Huawei, que em 2020 era claramente a líder no desenvolvimento de tecnologia 5G. Na época, emissários norte-americanos pediram que governos da União Europeia, de países do Sudeste Asiático e até do Brasil não comprassem tecnologia da Huawei.
Os motivos foram similares: Trump colocou a Huawei em uma lista negra comercial, por suspeita de espionagem, e vetou a compra e importação de qualquer produto da empresa, na época a maior fabricante de equipamentos comerciais do mundo. No ápice da disputa, ao menos 12 torres 5G foram incendiadas no Reino Unido por causa de teorias da conspiração que associavam a tecnologia com o coronavírus.
“Claramente, os EUA desejam manter-se no poder e aumentar esse poder, e temem a espionagem chinesa tanto em questões comerciais como políticas. Então, certamente que a estratégia de banir o TikTok é muito mais ampla, e pode sim ser considerada similar às medidas contra a Huawei”, analisa Bruna Thalita.
Apesar de toda essa movimentação, que sugere que punições drásticas serão tomadas em breve, o futuro do TikTok nos Estados Unidos, e parte do mundo ocidental, ainda é uma incógnita. O aplicativo já está proibido em dispositivos de funcionários dos governos de vários países, o que resolve o problema imediato. Mas como seria bloquear um aplicativo em todos os smartphones de um país? Apesar de ser uma possibilidade abertamente discutida, ainda não se sabe como a medida seria efetivada tecnicamente.
O mais fácil, provavelmente, seria mandar Apple e Google — controladoras das maiores lojas de apps do planeta — proibirem os downloads do TikTok. Mas a medida não é 100% efetiva, uma vez que indiretamente incentivaria donos de telefones que ainda quiserem usar o app a não mais atualizar seus telefones. A proibição ainda ajudaria criminosos, que poderiam oferecer programas fraudulentos capazes de hackear aparelhos.
Por sua vez, quase certamente os cidadãos do país não precisam se preocupar em ser presos por usar um aplicativo proibido. Especialistas norte-americanos apontam que mesmo as propostas de legislações mais rígidas contra o TikTok (como a DATA e a RESTRICT), restringem exportação e importação de “dados confidenciais” de norte-americanos, em situações de “riscos de segurança nacional”. As punições estão direcionadas para empresas e órgãos que facilitem essas transações de conteúdo para uma organização ou nação adversária, excluindo iniciativas pessoais. Mas nada impede que as punições sejam individualizadas, em propostas futuras.
No início de março, a Casa Branca emitiu uma nota de apoio ao projeto RESTRICT, o que dá mais chances do projeto ser aprovado. É uma lei considerada complexa até por estudiosos legislativos do país, que tenta evitar que dispositivos digitais sejam usados para “sabotagem ou subversão” e “efeitos catastróficos” no ecossistema digital do país. O medo é que um de seus efeitos futuros seja tornar a internet cada vez menos global e ostensivamente mais sujeita a atuações políticas. Ainda mais em uma época que EUA e China desenvolvem ainda mais tecnologia avançada, como inteligência artificial e drones.
“É possível antever que a fragmentação da internet pode, sim, provocar efeito reverso ao esperado, e incitar a formação de arranjos, alianças militares e/ou blocos econômicos ainda mais competitivos ou perigosos, assim como aconteceu no passado. Inclusive com a formação de um “mercado negro” sem regras, limites, princípios ou qualquer escrutínio e controle”, afirma Anderson Röhe.
Sem muitas dúvidas, uma solução que pode rachar os mercados globais de consumo digitais não é o esperado pelas big techs. A saída mais desejada por norte-americanos é a venda do TikTok para uma empresa do país, algo que a ByteDance (e o governo chinês) já deixou claro que não vai permitir. “O desinvestimento não resolve o problema: uma mudança de propriedade não imporia novas restrições aos fluxos de dados ou acesso”, afirmou a empresa, em um comunicado oficial.
Se levarmos em conta a capacidade de inovação da rede social — que levou a indicação de algoritmos ao seu poder máximo, numa mistura acelerada do Vine, Snapchat e Instagram — não é difícil ver big techs do Vale do Silício pressionando reguladores por uma solução do tipo, que lhes favoreceria numa disputa por domínio internacional.
“O banimento, sem qualquer comprovação de atos ilícitos, nunca é a solução, seja para o TikTok, seja para outras big techs. Porém é muito importante que regulamentações sejam feitas, no sentido de resguardo dos dados pessoais, alertas sobre algoritmos que causem danos aos direitos humanos e a proteção dentro das plataformas”, conclui Antônios Borges Neto.
De qualquer forma, dificilmente toda essa movimentação será o último ato da Guerra Fria entre os dois países.
TECNOLOGIA E CIÊNCIA | Filipe Siqueira, do R7